INTELIGÊNCIA JURÍDICA
Em novo artigo, Marcelo Tostes analisa a relação entre Inteligência Artificial e Propriedade Intelectual

Em outro artigo apontei que a Inteligência Artificial está cada vez mais presente em áreas jurídicas. Na Propriedade Intelectual (PI), em especial no Direito Autoral, a inovação põe em xeque o próprio conceito de autor.
Isto porque a Lei de Direito Autorais (Lei 9.610/96) estabelece que obra é uma criação do espírito (art. 7) e que autor, em regra, é a pessoa física criadora daquela (art. 11). Entretanto, as novas tecnologias parecem desafiar este conceito legal, apontando sua insuficiências. Como? Veja este quadro:
The Next Rembrandt.
Fonte:< https://news.microsoft.com/europe/features/next-rembrandt/>
Em um primeiro momento, todos reconheceriam o objeto como uma obra de arte cuja autoria seria atribuída à um pintor. Nada de novo. Contudo, pela letra da nossa Lei de Direitos Autorais, o objeto não poderia sequer ser reconhecido como obra.
É que a imagem acima representa uma tela baseada no pintor Rembrandt, mas que foi criada por uma Inteligência Artificial. O projeto, denominado “The Next Rembrandt”, não copia o trabalho do artista, mas utiliza de suas técnicas, pormenorizadamente estudadas, para imprimir uma nova tela.
Assim, o trabalho que aos olhos humanos é facilmente identificado como obra de arte, no Brasil, se encontra em um limbo jurídico, visto que não foi fruto do espírito humano ou de pessoa física, mas de algoritmo desenvolvido pela Microsoft [1].
É necessário fazer uma ressalva: o conteúdo deste texto não visa aprofundar nos aspectos relacionados ao Direito Autoral, ou seja, sobre quais países protegem ou não esta nova espécie de arte, ou sobre quais as possibilidades jurídicas neste novo cenário. O exemplo do “Novo Rembrandt” serve, por hora, como um lembrete de como as tecnologias já alcançam diversas áreas, inclusive as outrora consideradas “fruto do espírito humano”.
A proteção de obras, ou até mesmo invenções, criadas por Inteligências Artificiais ainda é assunto em aberto. Contudo, como apontou o Diretor Geral da Organização da Propriedade Intelectual (OMPI) [2], pelo ponto de vista econômico, não há razão para não protegermos as “criações das IAs”.
Fato é que a nova arte já chegou ao mercado[3]. O quadro ‘La Baronne de Belamy’ criado pelo algoritmo Genarative Adversarial Networks (GANs) em 2018 foi recentemente arrematado [4] pelo valor de 25 mil dólares. Na mesma linha, a tela “Katsuwaka of the Dawn Lagoon”, de 2019, foi vendida por cerca de 16 mil dólares. Todos os casos apontam a disparidade entre o tempo da tecnologia e o das leis sobre o tema.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NOS ÓRGÃOS NACIONAIS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
Outro destaque entre esta relação Inteligência Artificial-Propriedade Intelectual é o desenvolvimento de sistemas que auxiliem os órgãos nacionais que administram os registros relacionados à PI, sobretudo os de marcas e patentes (como o INPI).
Como se sabe, a novidade é condição essencial para patentear uma invenção. Deste modo, para concessão do registro de uma patente, o escritório deve verificar o chamado “estado da arte” daquele setor, buscando em seu banco dados as informações necessárias para assegurar aquele requisito.
Pelas marcas o procedimento é semelhante, mas ao invés da novidade preza-se pela distinção. Assim, é preciso saber se aquele marca se distingue suficientemente das demais existentes no mercado.
Ambas as análises são extremamente delicadas, já que a Propriedade Intelectual, sobretudo as duas espécies elencadas, impacta diretamente nos mercados, na concorrência e, portanto, na economia.
Neste sentido, visando facilitar o processo registral, a OMPI desenvolveu duas [3] ferramentas baseadas em IA: o buscador de imagens relacionadas à marcas (Global Brand Database) e tradutor de textos especializados (WIPO Translate), uma vez que para registrar uma invenção é mandatório anexar um relatório técnico sobre o produto. A Organização busca, deste modo, simplificar a procura pelo estado da arte, nas patentes, e pela distinção, nas marcas.
MOVIMENTO MULTILATERAL DOS REGISTROS E A IMPORTÂNCIA DA IA
Embora baseados na territorialidade, o aspecto multilateral do registro de patentes e marcas tem ganhado força. O Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT) e o Protocolo de Madrid, este último recentemente adotado pelo Brasil, aumentam a celeridade para aquisição da proteção de invenções e marcas em diversos locais do globo.
É natural que o comércio internacional se expanda com os avanços tecnológicos e vivemos em um contexto no qual as relações transnacionais que envolvam a Propriedade Intelectual já se tornaram mais frequentes. Como visto, são tais mesmos avanços, aplicados na rotina da Administração Pública e na dos tribunais que permitem que estas entidades acompanhem a velocidade do mundo 4.0.
Constato que já é possível perceber a associação da tecnologia com a Propriedade Intelectual explicitando tanto as vantagens trazidas pela inovação – agilidade nos processos administrativos, por exemplo – quanto à necessidade de adaptação das leis, julgados e conceitos jurídicos, ante as lacunas quanto a “IA inventora” e a “IA criadora”.
Reitero que os debates teóricos acerca do tema são necessários. Contudo, seguindo as palavras do Diretor Geral da OMPI, também não observo razões que impeçam a proteção da obra ou invenção oriunda de Inteligência Artificial. Assim, creio que estamos diante de uma reestruturação não somente da prática jurídica quanto ao tema, mas dos próprios conceitos de autor e inventor.
Referências
[1] MICROSOFT. Blurring the lines between art, technology and emotion: The next Rembrandt. Disponível em < https://news.microsoft.com/europe/features/next-rembrandt/>
[2] WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Artificial intelligence and intellectual property: an interview with Francis Gurry. Disponível em < https://www.wipo.int/wipo_magazine/en/2018/05/article_0001.html >
[3] WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. WIPO Translate. Disponível em < https://www.wipo.int/patentscope/en/wipo-translate/index.html>
[3] WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Global Brand Database. Disponível em < https://www3.wipo.int/branddb/en/ >
[3] ISTOÉ. Obras criadas por inteligência artificial vão a leilão. Disponível em <https://istoe.com.br/obras-criadas-por-inteligencia-artificial-vao-a-leilao/>
[4] SOTHEBY’s. Contemporary Art Day Auction. 15 de novembro de 2019. Disponível em <https://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/2019/contemporary-art-day-n10150/lot.462.html>
[4] BARBOSA, Denis. Uma Introdução à Propriedade Intelectual, Lumen Iuris: 2010.
[5] WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Perguntas e respostas sobre o PCT. Disponível em <https://www.wipo.int/export/sites/www/pct/pt/basic_facts/faqs_about_the_pct.pdf>