Sem agência reguladora, mercado de carbono brasileiro começa fragilizado e gera insegurança jurídica
Ana Clara Miranda, advogada tributária do Marcelo Tostes Advogados, alerta ao portal Lex Legal Brasil sobre os riscos da mudança e possível judicialização do mercado de carbono
Sem agência reguladora, mercado de carbono brasileiro começa fragilizado e gera insegurança jurídica
A decisão do governo federal de estruturar o mercado regulado de carbono por meio de uma secretaria extraordinária — e não de uma agência reguladora autônoma — acendeu o alerta entre especialistas do meio jurídico. A expectativa era de que o Brasil seguisse o caminho de outras economias que adotaram marcos regulatórios robustos e institucionalmente estáveis para gerenciar seus mercados de carbono. No entanto, com a escolha por um modelo mais centralizado e menos técnico, cresce a percepção de que o país está entrando em um setor altamente complexo sem os instrumentos legais e administrativos adequados para garantir sua funcionalidade.
A estrutura anunciada pelo governo será vinculada ao Ministério da Fazenda e criada por decreto até o fim de agosto. Ela terá a responsabilidade de implementar o mercado regulado de carbono — mecanismo que visa limitar a emissão de gases de efeito estufa por meio da comercialização de permissões (créditos de carbono), funcionando como uma alternativa à criação de um imposto sobre o carbono.
Para o advogado Leonardo Corrêa, sócio da área de Direito Ambiental e Regulatório do VLF Advogados, a ausência de uma autarquia reguladora independente coloca em risco toda a credibilidade do sistema.
“A criação de um mercado não é um processo automático ou simples. Mercado é uma construção institucional que exige governança, regras claras, capacidade técnica e investimentos contínuos”, alerta.
Corrêa aponta ainda que a escolha por não instituir uma agência própria ignora experiências institucionais consolidadas e pode deixar o Brasil despreparado para lidar com a complexidade do novo sistema.
“Ao abrir mão de uma agência reguladora específica, o país ignora os aprendizados institucionais disponíveis e entra despreparado nesse novo campo. O risco é alto. Podemos ter um órgão sem capacidade técnica para implementar, monitorar e fiscalizar um sistema com tamanha complexidade. E mais preocupante ainda, um órgão que pode mudar de direção a cada nova orientação política do Ministério da Fazenda”, afirma.
O que diz a lei e por que a agência importa
No ordenamento jurídico brasileiro, agências reguladoras são autarquias de regime especial, com autonomia técnica, administrativa e financeira. Essa estrutura confere a elas maior estabilidade institucional, menor interferência política e maior previsibilidade na formulação e execução de políticas públicas. São exemplos a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A proposta do governo de substituir essa modelagem por uma secretaria extraordinária esbarra justamente na ausência desses pilares. Para a advogada Ana Clara Miranda, especialista em Direito Tributário e integrante do Marcelo Tostes Advogados, essa mudança compromete a segurança jurídica do mercado e transmite uma imagem de instabilidade.
“A secretaria extraordinária, por ser criada por decreto e vinculada diretamente ao Executivo, carece da força normativa e da estabilidade institucional de uma agência reguladora, que possui autonomia técnica, administrativa e financeira”, explica.
“A substituição dessa estrutura por uma secretaria transmite uma imagem de improviso e instabilidade. Isso pode dificultar a inserção do Brasil em mercados internacionais de carbono e comprometer compromissos climáticos assumidos”, acrescenta.
Além disso, a ausência de uma autarquia especializada pode gerar insegurança quanto à legalidade dos atos praticados pelo novo órgão. Isso porque diversas atribuições típicas de agências — como certificação, regulação técnica, fiscalização de projetos e imposição de sanções — exigem competência legal clara. Sem base normativa robusta, abre-se espaço para contestação judicial, o que pode travar o desenvolvimento do mercado e afastar investidores.
Riscos de judicialização e fragilidade regulatória
A judicialização é, de fato, um dos principais riscos apontados por especialistas. Ana Clara Miranda destaca que a falta de uma base legal sólida para que a nova secretaria assuma funções regulatórias pode gerar questionamentos nos tribunais.
“Esse cenário compromete diretamente a confiança dos investidores e a estabilidade jurídica do mercado nascente, sobretudo diante da crescente exigência internacional por integridade regulatória e ambiental.”
Ela também chama atenção para a possibilidade de a secretaria extrapolar suas atribuições. A ausência de uma lei que defina com clareza suas competências abre margem para atuação além dos limites legais, o que pode configurar abuso de poder regulatório.
Outro problema é a falta de alinhamento do modelo brasileiro com as metodologias internacionais já consolidadas, como as desenvolvidas pela Verra e pela Architecture for REDD+ Transactions (ART). Esses padrões são amplamente reconhecidos por mercados exigentes, como o europeu, e incluem regras rigorosas para evitar práticas como a dupla contagem de créditos — situação em que um mesmo crédito de carbono é contabilizado por mais de um país ou empresa.
Sem aderência a essas metodologias e sem mecanismos confiáveis de controle, o mercado brasileiro corre o risco de ter seus créditos rejeitados por compradores internacionais, enfraquecendo sua posição em negociações multilaterais no âmbito do Acordo de Paris.
Governança técnica e estabilidade: pilares do mercado
A governança do mercado regulado de carbono exige mais do que vontade política. É necessária uma estrutura institucional que ofereça confiança aos agentes econômicos, consistência técnica e previsibilidade normativa. Essas características são cruciais para atrair investimentos e viabilizar projetos de longo prazo.
Leonardo Corrêa resume esse desafio ao afirmar:
“Equilíbrio fiscal é importante, mas é preciso lembrar que a opção por um mercado regulado, e não por um modelo de tributação direta, foi uma decisão política. Agora, é preciso tratar com seriedade as instituições que darão sustentação a essa escolha. Sem arcabouço técnico e estabilidade institucional, não haverá credibilidade, nem mercado.”
O especialista reforça que a credibilidade não se constrói apenas com normas publicadas em diário oficial, mas com a capacidade de aplicá-las de forma contínua, isenta e previsível.
“Sem estrutura regulatória confiável, o mercado brasileiro de carbono poderá ser visto como pouco confiável ou vulnerável a mudanças políticas de curto prazo, o que afugenta investidores e compromete a funcionalidade do sistema”, pontua
O papel do Estado e o que esperar a partir de agora
A regulamentação do mercado de carbono brasileiro foi estabelecida pela Lei nº 14.590/2023, que criou o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). No entanto, o detalhamento operacional do sistema — como a forma de registro dos créditos, critérios de elegibilidade, monitoramento, verificação e reporte das emissões — ainda depende de regulamentação infralegal, como decretos e portarias.
A expectativa é de que, até o fim de agosto, o governo publique um plano de ação e oficialize a criação da secretaria extraordinária. Até lá, permanecem as dúvidas sobre a estrutura, atribuições e mecanismos de fiscalização que serão conferidos ao novo órgão.
Caso o Brasil queira se posicionar como protagonista global no mercado de carbono, será necessário avançar com maior rigor institucional, garantir segurança jurídica aos participantes do sistema e harmonizar sua regulação com as práticas internacionais.
Do contrário, corre-se o risco de desperdiçar uma das maiores vantagens comparativas do país — a possibilidade de gerar créditos de carbono em larga escala, com base em ativos florestais, agrícolas e industriais — por falta de governança adequada.