Lei das Offshores e o precedente judicial que afastou IRPF sobre valorização de ações no exterior
Enzo Oliveira Silva, advogado tributário do Marcelo Tostes Advogados, analisa a decisão que afastou o IRPF sobre a valorização de ações em offshores no regime opaco.
A promulgação da Lei nº 14.754, de 26 de dezembro de 2023, conhecida como a “Lei das Offshores”, representou um marco significativo na legislação tributária brasileira, especialmente no que tange à tributação de investimentos e ativos detidos por pessoas físicas no exterior.
A legislação, que buscou modernizar e harmonizar o sistema tributário nacional com práticas internacionais, estabeleceu novas regras para a tributação da renda auferida por meio de entidades controladas no exterior, fundos de investimento e outros instrumentos financeiros localizados fora do território nacional, buscando combater a elisão fiscal e promover maior equidade na arrecadação.
Essa nova sistemática impôs aos contribuintes residentes no Brasil a obrigação de declarar e, em muitos casos, antecipar a tributação sobre rendimentos que, até então, poderiam ter diferentes tratamentos fiscais, inaugurando um cenário de adaptação e, para alguns, de questionamento jurídico sobre a constitucionalidade e a conformidade de certas disposições com os princípios tributários fundamentais.
A Lei nº 14.754/2023 introduziu uma estrutura dual para a tributação das entidades controladas no exterior, oferecendo aos contribuintes a opção entre dois regimes: o transparente e o opaco.
O regime transparente exige que todos os investimentos subjacentes da entidade offshore sejam detalhados na declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física, de forma análoga à posse direta. Neste modelo, a tributação incide sobre a realização de renda, o que inclui a variação cambial positiva, no momento do evento que a concretiza. Importante salientar que, sob este regime, a mera valorização de ações não enseja a tributação anual do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), aguardando a efetiva alienação ou resgate para que o ganho seja considerado realizado.
Em contrapartida, o regime opaco, considerado a modalidade de offshore clássica, é frequentemente escolhido por investidores com carteiras de investimento que apresentam grande volume e frequência de transações.
Neste modelo, a legislação prevê que, ao final de cada exercício social, a entidade controlada no exterior deverá realizar seu balanço contábil, e o contribuinte pessoa física será sujeito à tributação de 15% sobre o lucro apurado, o que inclui a valorização de ativos como as ações, mesmo que os valores correspondentes não tenham sido resgatados ou distribuídos à pessoa física. Essa distinção de tratamento, especialmente no que se refere à tributação de ganhos não realizados no regime opaco, tem sido o epicentro das discussões jurídicas e dos desafios enfrentados pelos contribuintes.
O ponto fulcral da controvérsia jurídica que emergiu com a implementação da Lei das Offshores, especialmente no tocante ao regime opaco, reside na tributação de rendimentos que não se materializaram em disponibilidade econômica ou jurídica para o contribuinte.
A essência do sistema tributário brasileiro, alinhada com o conceito constitucional de renda, previsto no artigo 153, inciso III, da Constituição Federal, e desenvolvido no artigo 43 do Código Tributário Nacional, pressupõe a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de riqueza nova. Isso significa que, para que um valor seja considerado renda tributável, ele deve representar um acréscimo patrimonial efetivo, que o contribuinte possa dispor livremente, seja por recebimento direto, crédito em conta, ou por uma manifestação de sua vontade de incorporar aquele ganho ao seu patrimônio de forma irreversível.
A mera valorização contábil de um ativo, como ações detidas por uma offshore no regime opaco, não implica, para muitos juristas, a existência de uma renda efetivamente realizada, mas sim de uma renda potencial ou virtual. A principal argumentação é que a imposição do IRPF sobre tal valorização viola o conceito de renda, uma vez que o investidor não possui, necessariamente, liquidez para arcar com o imposto sobre um ganho que ainda não se concretizou, podendo gerar uma situação de confisco ou de tributação sobre o capital.
Nesse contexto de incerteza e debate jurídico, uma decisão proferida pela Justiça Federal, especificamente pela 6ª Vara Federal de Ribeirão Preto (SP), no processo nº 5007446-97.2025.4.03.6102, representou um desenvolvimento significativo para os contribuintes. Um investidor impetrou mandado de segurança visando afastar a incidência do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) sobre a valorização de ações mantidas por meio de estruturas de investimentos no exterior, enquadradas no regime opaco da Lei nº 14.754/2023. A argumentação central do contribuinte, defendida por sua advogada Thais de Laurentiis, foi a de que a mera valorização dos papéis não constitui renda em seu sentido jurídico, visto que não há disponibilidade efetiva dos valores.
A decisão, proferida pelo juiz federal substituto Jonathas Celino Paiola, acolheu o pleito do contribuinte, afastando a tributação automática e anual sobre a valorização das ações. O magistrado, em sua fundamentação, destacou que, embora pela perspectiva contábil o ajuste ao valor justo dos ativos financeiros do impetrante estivesse submetido à tributação do Imposto de Renda, sob a ótica do direito brasileiro, a realização é um elemento indissociável do conceito de renda e não pode ser suprimido pelo legislador.
A sentença da 6ª Vara Federal de Ribeirão Preto aprofundou-se na análise do conceito de renda, reforçando que a tributação deve incidir sobre manifestações reais de capacidade contributiva. Para o juiz, essa capacidade não se concretiza enquanto o contribuinte não tiver praticado um ato que represente sua vontade de incorporar ao patrimônio, de forma definitiva, um ganho baseado em valores de mercado, excluindo-se as transações compulsórias.
A decisão enfatizou que a existência de renda está atrelada a um acesso irreversível a uma nova riqueza, que seja realizada e sobre a qual o contribuinte possa dispor livremente.
Desse modo, as simples alterações no valor de um ativo, como a valorização de ações, não se amoldam ao conceito jurídico de renda apta a ser tributada. O magistrado ainda fez um paralelo com a compra e venda de ações no mercado tradicional, cuja natureza é estritamente mercantil, indicando que a incidência do Imposto de Renda, sob a forma de ganho de capital, somente ocorre no momento da alienação com lucro do bem, conforme a Lei nº 7.713, de 1988.
Este entendimento sublinha a necessidade de que o ganho seja concretizado para que a exação tributária seja legítima, conferindo maior segurança jurídica aos contribuintes que se encontram em situação semelhante.
Apesar da decisão favorável em Ribeirão Preto, o cenário jurídico em torno da Lei das Offshores permanece em desenvolvimento e não é unânime.
Outra decisão, em caráter liminar, proferida pela Justiça Federal em São Paulo, no processo nº 5035245-58.2024.4.03.6100, demonstrou uma interpretação distinta. Neste caso, a juíza federal Rosana Ferri, da 24ª Vara Cível Federal de São Paulo, negou o pedido de suspensão da exigibilidade do IRPF sobre os lucros de uma sociedade controlada no exterior antes da efetiva distribuição e percepção dos rendimentos, bem como a suspensão da tributação do ganho de capital sobre a variação cambial de ativos.
A negativa foi fundamentada na ausência de elementos que evidenciassem o direito à concessão da liminar, indicando que a análise preliminar não identificou a probabilidade do direito alegado pelo contribuinte. Esta divergência inicial entre as decisões judiciais de primeiro grau sublinha a complexidade do tema e a ausência de um consenso imediato sobre a interpretação das novas regras tributárias, criando um ambiente de insegurança jurídica que demanda a intervenção e a uniformização de entendimento pelas instâncias superiores do Poder Judiciário.
A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) já se manifestou indicando que irá recorrer da decisão proferida pela 6ª Vara Federal de Ribeirão Preto, reafirmando sua posição de que a tributação dos rendimentos auferidos no exterior por pessoas físicas, tal como introduzida pela Lei nº 14.754/2023, é plenamente legal.
Este posicionamento da PGFN reflete a perspectiva do Fisco de que a legislação se alinha aos preceitos constitucionais e infraconstitucionais, e que a sistemática de tributação, incluindo a incidência sobre ganhos não realizados em certos regimes, é uma ferramenta legítima para a arrecadação e para evitar a evasão e elisão fiscal.
A questão, portanto, ascenderá às instâncias recursais, onde os argumentos sobre a essencialidade da realização da renda para a ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda serão novamente debatidos em face da interpretação da PGFN e dos precedentes existentes. É imperativo observar que, em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia julgado constitucional a tributação de resultados de empresas controladas ou coligadas em paraísos fiscais na data do balanço (ADI 2588). Contudo, a discussão atual se distingue por abordar especificamente a pessoa física e a valorização de ações sem resgate, trazendo nuances que precisarão ser cuidadosamente analisadas pelos tribunais superiores.
Investidores e profissionais do direito devem acompanhar atentamente os desdobramentos desses litígios, que moldarão a interpretação e a aplicação prática da Lei nº 14.754/2023, impactando diretamente o planejamento tributário e financeiro de pessoas físicas com investimentos no exterior.
A complexidade da matéria e a magnitude dos valores envolvidos asseguram que este tema continuará no centro das atenções no campo do direito tributário nos próximos anos, exigindo uma análise individualizada e estratégica para cada caso, considerando as particularidades dos ativos e a escolha do regime tributário.
A equipe Tributária MTA encontra-se à disposição para maiores esclarecimentos.